sexta-feira, 27 de março de 2015

SEMINÁRIO 30 - MÓD. III - CONTRATOS DE TRANSPORTE

ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA
4º Curso de Pós-Graduação “Lato Sensu” – Especialização em Direito do Consumidor
Módulo 3 - Seminário 30, de 11/12/2014
CONTRATOS DE TRANSPORTE

1)               Na hipótese de contrato de transporte aéreo de pessoas, a denegação de embarque  com fundamento em overbooking advindo de no-show de outrem, caracteriza inadimplemento contratual? Se, por outro lado, o passageiro aceitar embarque em aeronave em voo sucessivo, poderá ser elidido o overbooking, de modo a permitir inserção nas hipóteses de atraso em voo? A responsabilidade do transportador aéreo, in casu, é ilimitada?
Resposta à primeira pergunta: Esclarecemos inicialmente que overbooking significa sobrevenda, vendas além da disponibilidade. No show são passageiros reservados que não compareceram para embarque.
O overbooking é prática utilizada pela operadora de transporte aéreo para compensar o no-show. Ou seja, a operadora, prevendo (estimando) a ocorrência de no show, vende um número de assentos além dos disponíveis, como uma forma de evitar ou compensar eventual prejuízo pelas desistências, quer sejam voluntárias ou involuntárias.
O overbooking raramente ocorre com passageiro portador de bilhete de primeira classe. Geralmente ocorre o overbooking com passageiro reservado na classe econômica cujo bilhete de passagem é emitido com tarifa reduzida.
Trata-se de prática abusiva por ferir os princípios da igualdade, da boa-fé, da dignidade da pessoa humana.  O contrato de transporte encontra-se definido no CC, art. 730, como sendo um contrato em que alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas.
Ora, se uma pessoa contrata um serviço de transporte aéreo é porque deseja ser transportada de um lugar para outro. Sendo de primeira classe ou não, o contrato é o mesmo, a prestação de serviço é a mesma. Deixando, portanto, de cumprir o pactuado, haverá inadimplemento contratual absoluto da empresa aérea.
Resposta à segunda pergunta: Não, pois overbooking e atraso em voo são situações distintas. Enquanto overbooking se trata de venda além da disponibilidade de assentos, o atraso em voo se constitui em demora no embarque por vários motivos, como, por exemplo, o mau tempo (força maior). Atraso é a não chegada ao destino no horário, conforme contrato celebrado.
Muitas vezes a hipótese de atraso em voo é utilizada pela companhia aérea para camuflar o overbooking.
Fazer o consumidor embarcar em outro voo com a justificativa de atraso em voo, quando, na verdade, foi praticado overbooking, é o mesmo que enganá-lo, não sendo transparente na real prestação das informações.
Tal justificativa, que tem por fim cobrir a realidade de um comportamento inadequado (o overbooking), é prática abusiva e enganosa que fere os princípios da confiança, da transparência, da boa-fé, da dignidade do consumidor (Art. 4º, CDC), dando ensejo à reparação de danos suportados.
Resposta à terceira pergunta: A responsabilidade do transportador aéreo é ilimitada, pois sua atividade se afigura a uma das hipóteses do art. 3º, “caput”, §2º, ambos do CDC, ensejando a aplicação do art. 14, do CDC (responsabilidade por fato do serviço) ou do art. 20, do CDC (responsabilidade por vício do serviço).

2)               Na hipótese de antinomias entre normas do Sistema de Varsóvia, Convenção de Montreal e Código Brasileiro de Aeronáutica em relação ao Sistema de Defesa do Consumidor, respectivamente, quais os critérios de solução possíveis? Quais as posições do TJSP, STJ e STF?
R: Cumpre, inicialmente, contextualizar sobre a Convenção de Varsóvia, o Pacto de Montreal e o Código Brasileiro da Aeronáutica.
A Convenção de Varsóvia foi inserida em nosso ordenamento jurídico por meio do Decreto nº 20.704 de 24.11.1931. Essa convenção estabeleceu limites tarifários para indenização a título de reparação de dano, como por exemplo, morte, ferimento ou qualquer outra lesão ocorrida a bordo, ou nas operações de embarque ou desembarque (art. 17); por perda, destruição ou avaria de carga ou bagagem, ocorridas durante o transporte (art. 18); atrasos no transporte de coisas ou pessoas (art. 19).  Além disso, a empresa de transporte pode se eximir da reparação, caso prove que observou todos os procedimentos para evitar o dano. Ou seja, a responsabilidade decorre do subjetivismo.
O Pacto de Montreal ingressou no sistema jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 5.910, de 27/09/2006. Trata-se de uma Pacto que modificou a Convenção de Varsóvia, modernizando-a.
O Código Brasileiro de Aeronáutica foi instituído por meio da Lei nº 7.565, de 19.12.1986 e também estabelece, como a Convenção de Varsóvia, um sistema tarifário para indenização a título de eventuais responsabilidades decorrentes de sua atividade.
O conflito aparente dessas normas só haverá quando estivermos diante de uma relação jurídica de consumo.
O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8078/90) ordena a reparação integral em caso de eventual dano praticado em decorrência da prestação de serviço de um fornecedor.
A jurisprudência do STJ, depois de alguma hesitação, acabou por firmar, com solidez, no sentido de aplicação do CDC e não da Convenção de Varsóvia e reafirmou seu posicionamento num julgado publicado em 04.11.2014 (STJ, AgRg no AREsp 567.681. Rel. Min. Marco Belizze, DJ 04/11/2014).
 O STF ainda não se pronunciou sobre a questão, havendo votos recentes favoráveis à aplicação da Convenção de Varsóvia em detrimento do CDC.
Já o TJ/SP tem aplicado o CDC, com fundamento na Constituição da República, no art. 5º, Inciso X (reparação integral) e no próprio CDC, no art. 6º, Inciso VI, afastando a aplicação da Convenção que limita a reparação.
3)               Uma grande multinacional importou da Alemanha equipamento industrial por meio de transporte aéreo de carga. Por ocasião da chegada ao local de destino, observou-se que mencionada carga havia sido danificada irremediavelmente. Desse modo, a companhia aérea ofereceu pagamento com fundamento no conhecimento aéreo de transporte. Por sua vez, a multinacional arguiu que se aplicavam os ditames do sistema consumerista, que contempla indenização sem patamar-limite indenizável. Quais os argumentos utilizáveis como advogado da companhia aérea?
R: O advogado da companhia aérea, no sentido de afastar a incidência do CDC, poderá utilizar-se de dois argumentos: primeiro, por não se tratar de relação de consumo a contratação de prestação de serviços entre duas empresas, uma vez que não haveria desequilíbrio nessa relação jurídica consumerista; segundo, por ser aplicável as convenções internacionais ao caso, notadamente a convenção de Varsóvia, por regulamentar especificamente a relação de transporte aéreo internacional (e ser vantajosa para a companhia por limitar a indenização). Tal discussão vem sendo discutida no STF, por meio do Recurso Extraordinário com Agravo nº 766.618 e do Recurso Extraordinário 636.331, contudo sem solução definitiva.
4)               Na hipótese de transporte aéreo doméstico de pessoas, a indenização por atraso em voo nos termos do Código Brasileiro de Aeronáutica, prevê indenização limitada, a partir de quatro horas em relação ao horário inicialmente pactuado. Vosso cliente adquiriu passagem aérea no trecho São Paulo-Rio de Janeiro e exige indenização com fundamento em uma hora de atraso, que ensejou perda de reunião. Quais os argumentos utilizáveis?
R: Conforme consta do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565 de 19 de dezembro de 1986) e da Resolução da ANAC (Resolução nº 141 de 09 de março de 2010 da ANAC), o atraso ou cancelamento de um voo, por si só, não configuram o dano moral, sendo imprescindível que as circunstâncias do caso concreto apontem para a efetiva e concreta violação da dignidade da pessoa, tal como compreendido o preceito exposto no art. 1º inciso III da CR/88. 
Assim, no presente caso, comprovou-se a ocorrência do dano. Aplica-se aqui o Código de Defesa do Consumidor, devendo responder objetivamente a companhia aérea em decorrência do atraso (nexo de causalidade) no trecho São Paulo – Rio de Janeiro, na medida em que o passageiro obteve prejuízos de ordens morais (e possivelmente materiais) com a perda da reunião.
O CDC, que possui natureza de norma de ordem pública, veio para dar efetividade ao preceito constitucional (art. 5º, XXXII), assim, a defesa do consumidor se tornou um direito fundamental. Portanto, o CDC ao adotar a teoria da responsabilidade objetiva previu a indenização independente da comprovação da culpa, ou seja, irrelevante tenha ocorrido culpa ou não da empresa aérea pelo atraso, basta a existência do nexo causal entre o evento danoso e o prejuízo sofrido.
Comprovou-se, no caso concreto, o prejuízo sofrido e a consequente possibilidade de indenização do consumidor em questão. A proteção do consumidor deve ser efetiva, na medida de sua hipossuficiência e vulnerabilidade perante a companhia aérea. Daí a aplicação do CDC para dar respaldo ao pleito indenizatório.
5)               No transporte terrestre a exigência de declaração especial de valor legitima a utilização de patamar-indenizável por parte do transportador na hipótese de extravio ou perda de bagagem?
R: A utilização de patamar-indenizável ou tarifação na ocorrência de extravio ou perda de bagagem encontra-se prevista no art. 29, XIII e art. 74, parágrafo único ambos do Decreto nº 2521/98 que regula o transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros.
Essa tarifação é afastada pela incidência do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8078/90), no qual contempla, em conformidade com a Constituição Republicana (art. 5º, X), o direito básico de reparação de danos (art. 6º, VI) de forma integral. 
Além disso, o contrato de transporte, disciplinado no CC, art. 730 e seguintes, traz cláusula de incolumidade, que o leva assumir o perfil de garantia de risco, de modo que a empresa transportadora deverá reparar o dano, integralmente, decorrente do extravio de bagagem (art. 734, CC, art. 14 do CDC).
Conclui-se, então, que o parágrafo único do art. 734 do CC e o Decreto 2521/98 não devem ser observados no que tange à limitação da reparação indenizatória pelo extravio ou furto de bagagem, porque o CDC tem maior amplitude na efetivação do direito básico do consumidor, insculpido no art. 6º, VI do CDC, que prevê a integralidade da indenização.
6)               Em 2008 e 2011, conforme ampla divulgação pela imprensa, houve erupção vulcânica no Chile, que impediu operações aeronáuticas em aeroportos localizados em pontos turísticos de ampla demanda, inclusive na Argentina (e. g. Bariloche). Trata-se de fortuito externo apto a elidir integralmente o dever de indenizar, ou há possibilidade de que o prejuízo do consumidor seja objeto de ressarcimento junto à companhia aérea, operadora turística e/ou agência de viagem? Explicar e fundamentar.
R: Não se trata de caso fortuito externo, pois foi prevista a ocorrência de erupção vulcânica noticiada pela imprensa de forma ampla. O que se depreende da hipótese é que há dever de indenizar da operadora turística e/ou agência de viagem por não informar os consumidores sobre fato natural amplamente divulgado pela imprensa para possibilitarem o exercício de seus direitos, entre eles a devolução do valor investido, troca de data da viagem.
O fundamento decorre da incidência do CDC nesta situação, de modo que pertinente a aplicação da teoria da responsabilidade objetiva. Com isso, basta a ocorrência do dano, ou seja, o defeito na prestação do serviço, o prejuízo ao consumidor para que seja configurado o dever de indenizar do prestador de serviço.
Exceto nos casos de culpa exclusiva do consumidor, circunstância que não se enquadra no evento relatado na questão.
Ademais, a erupção vulcânica não se configura como excludente de responsabilidade objetiva. Isto, porque não se trata de questão atinente ao direito civil propriamente dito, onde há a possibilidade de discussão da culpa, até mesmo como forma de afastar eventual injustiça, na medida em que, nos primórdios do direito romano a indenização era baseada na culpa.
Portanto, em se tratando de relação consumo, onde se aplica a proteção conferida pelo CDC aos consumidores, de rigor o reconhecimento do risco do negócio inerente às atividades desenvolvidas pelos fornecedores/prestadores de serviço; condição esta que se apresenta em contrapartida ao lucro auferido.

Deste modo, o consumidor terá amplo direito à indenização pelos danos (materiais e morais) sofridos em virtude da viagem frustrada.

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