ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA
4º Curso de Pós-Graduação “Lato
Sensu” – Especialização em Direito do Consumidor
Módulo 3 - Seminário 30, de 11/12/2014
CONTRATOS DE TRANSPORTE
1)
Na
hipótese de contrato de transporte aéreo de pessoas, a denegação de
embarque com fundamento em overbooking advindo de no-show de outrem, caracteriza
inadimplemento contratual? Se, por outro lado, o passageiro aceitar embarque em
aeronave em voo sucessivo, poderá ser elidido o overbooking, de modo a permitir inserção nas hipóteses de atraso em
voo? A responsabilidade do transportador aéreo, in casu, é ilimitada?
Resposta à primeira pergunta:
Esclarecemos inicialmente que overbooking
significa sobrevenda, vendas além da disponibilidade. No show são passageiros reservados que não compareceram para
embarque.
O
overbooking é prática utilizada pela
operadora de transporte aéreo para compensar o no-show. Ou seja, a operadora, prevendo (estimando) a ocorrência de
no show, vende um número de assentos
além dos disponíveis, como uma forma de evitar ou compensar eventual prejuízo
pelas desistências, quer sejam voluntárias ou involuntárias.
O
overbooking raramente ocorre com
passageiro portador de bilhete de primeira classe. Geralmente ocorre o overbooking com passageiro reservado na
classe econômica cujo bilhete de passagem é emitido com tarifa reduzida.
Trata-se
de prática abusiva por ferir os princípios da igualdade, da boa-fé, da
dignidade da pessoa humana. O contrato
de transporte encontra-se definido no CC, art. 730, como sendo um contrato em
que alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para
outro, pessoas ou coisas.
Ora,
se uma pessoa contrata um serviço de transporte aéreo é porque deseja ser
transportada de um lugar para outro. Sendo de primeira classe ou não, o
contrato é o mesmo, a prestação de serviço é a mesma. Deixando, portanto, de
cumprir o pactuado, haverá inadimplemento contratual absoluto da empresa aérea.
Resposta à segunda pergunta: Não,
pois overbooking e atraso em voo são
situações distintas. Enquanto overbooking
se trata de venda além da disponibilidade de assentos, o atraso em voo se
constitui em demora no embarque por vários motivos, como, por exemplo, o mau
tempo (força maior). Atraso é a não chegada ao destino no horário, conforme
contrato celebrado.
Muitas
vezes a hipótese de atraso em voo é utilizada pela companhia aérea para camuflar
o overbooking.
Fazer
o consumidor embarcar em outro voo com a justificativa de atraso em voo,
quando, na verdade, foi praticado overbooking,
é o mesmo que enganá-lo, não sendo transparente na real prestação das
informações.
Tal
justificativa, que tem por fim cobrir a realidade de um comportamento
inadequado (o overbooking), é prática
abusiva e enganosa que fere os princípios da confiança, da transparência, da
boa-fé, da dignidade do consumidor (Art. 4º, CDC), dando ensejo à reparação de
danos suportados.
Resposta à terceira pergunta: A
responsabilidade do transportador aéreo é ilimitada, pois sua atividade se
afigura a uma das hipóteses do art. 3º, “caput”, §2º, ambos do CDC, ensejando a
aplicação do art. 14, do CDC (responsabilidade por fato do serviço) ou do art. 20,
do CDC (responsabilidade por vício do serviço).
2)
Na
hipótese de antinomias entre normas do Sistema de Varsóvia, Convenção de
Montreal e Código Brasileiro de Aeronáutica em relação ao Sistema de Defesa do
Consumidor, respectivamente, quais os critérios de solução possíveis? Quais as
posições do TJSP, STJ e STF?
R: Cumpre,
inicialmente, contextualizar sobre a Convenção de Varsóvia, o Pacto de Montreal
e o Código Brasileiro da Aeronáutica.
A
Convenção de Varsóvia foi inserida
em nosso ordenamento jurídico por meio do Decreto nº 20.704 de 24.11.1931. Essa
convenção estabeleceu limites tarifários para indenização a título de reparação
de dano, como por exemplo, morte, ferimento ou qualquer outra lesão ocorrida a
bordo, ou nas operações de embarque ou desembarque (art. 17); por perda,
destruição ou avaria de carga ou bagagem, ocorridas durante o transporte (art.
18); atrasos no transporte de coisas ou pessoas (art. 19). Além disso, a empresa de transporte pode se
eximir da reparação, caso prove que observou todos os procedimentos para evitar
o dano. Ou seja, a responsabilidade decorre do subjetivismo.
O
Pacto de Montreal ingressou no
sistema jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 5.910, de 27/09/2006.
Trata-se de uma Pacto que modificou a Convenção de Varsóvia, modernizando-a.
O
Código Brasileiro de Aeronáutica foi
instituído por meio da Lei nº 7.565, de 19.12.1986 e também estabelece, como a
Convenção de Varsóvia, um sistema tarifário para indenização a título de eventuais
responsabilidades decorrentes de sua atividade.
O
conflito aparente dessas normas só haverá quando estivermos diante de uma
relação jurídica de consumo.
O
Código de Defesa do Consumidor (Lei
nº 8078/90) ordena a reparação integral em caso de eventual dano praticado em
decorrência da prestação de serviço de um fornecedor.
A
jurisprudência do STJ, depois de alguma hesitação, acabou por firmar, com
solidez, no sentido de aplicação do CDC e não da Convenção de Varsóvia e
reafirmou seu posicionamento num julgado publicado em 04.11.2014 (STJ, AgRg no
AREsp 567.681. Rel. Min. Marco Belizze, DJ 04/11/2014).
O
STF ainda não se pronunciou sobre a questão, havendo votos recentes favoráveis
à aplicação da Convenção de Varsóvia em detrimento do CDC.
Já
o TJ/SP tem aplicado o CDC, com fundamento na Constituição da República, no
art. 5º, Inciso X (reparação integral) e no próprio CDC, no art. 6º, Inciso VI,
afastando a aplicação da Convenção que limita a reparação.
3)
Uma grande
multinacional importou da Alemanha equipamento industrial por meio de
transporte aéreo de carga. Por ocasião da chegada ao local de destino,
observou-se que mencionada carga havia sido danificada irremediavelmente. Desse
modo, a companhia aérea ofereceu pagamento com fundamento no conhecimento aéreo
de transporte. Por sua vez, a multinacional arguiu que se aplicavam os ditames
do sistema consumerista, que contempla indenização sem patamar-limite
indenizável. Quais os argumentos utilizáveis como advogado da companhia aérea?
R:
O advogado da companhia aérea, no sentido de afastar a incidência do CDC,
poderá utilizar-se de dois argumentos: primeiro,
por não se tratar de relação de consumo a contratação de prestação de serviços
entre duas empresas, uma vez que não haveria desequilíbrio nessa relação
jurídica consumerista; segundo, por
ser aplicável as convenções internacionais ao caso, notadamente a convenção de
Varsóvia, por regulamentar especificamente a relação de transporte aéreo
internacional (e ser vantajosa para a companhia por limitar a indenização). Tal
discussão vem sendo discutida no STF, por meio do Recurso Extraordinário com
Agravo nº 766.618 e do Recurso Extraordinário 636.331, contudo sem solução
definitiva.
4)
Na
hipótese de transporte aéreo doméstico de pessoas, a indenização por atraso em
voo nos termos do Código Brasileiro de Aeronáutica, prevê indenização limitada,
a partir de quatro horas em relação ao horário inicialmente pactuado. Vosso
cliente adquiriu passagem aérea no trecho São Paulo-Rio de Janeiro e exige indenização
com fundamento em uma hora de atraso, que ensejou perda de reunião. Quais os
argumentos utilizáveis?
R:
Conforme consta do Código
Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565 de 19 de dezembro de 1986) e da
Resolução da ANAC (Resolução nº 141 de 09 de março de 2010 da ANAC), o atraso
ou cancelamento de um voo, por si só, não configuram o dano moral, sendo
imprescindível que as circunstâncias do caso concreto apontem para a efetiva e
concreta violação da dignidade da pessoa, tal como compreendido o preceito
exposto no art. 1º inciso III da CR/88.
Assim,
no presente caso, comprovou-se a ocorrência do dano. Aplica-se aqui o Código de
Defesa do Consumidor, devendo responder objetivamente a companhia aérea em
decorrência do atraso (nexo de causalidade) no trecho São Paulo – Rio de
Janeiro, na medida em que o passageiro obteve prejuízos de ordens morais (e
possivelmente materiais) com a perda da reunião.
O
CDC, que possui natureza de norma de ordem pública, veio para dar efetividade
ao preceito constitucional (art. 5º, XXXII), assim, a defesa do consumidor se
tornou um direito fundamental. Portanto, o CDC ao adotar a teoria da
responsabilidade objetiva previu a indenização independente da comprovação da
culpa, ou seja, irrelevante tenha ocorrido culpa ou não da empresa aérea pelo
atraso, basta a existência do nexo causal entre o evento danoso e o prejuízo
sofrido.
Comprovou-se,
no caso concreto, o prejuízo sofrido e a consequente possibilidade de
indenização do consumidor em questão. A proteção do consumidor deve ser
efetiva, na medida de sua hipossuficiência e vulnerabilidade perante a
companhia aérea. Daí a aplicação do CDC para dar respaldo ao pleito
indenizatório.
5)
No
transporte terrestre a exigência de declaração especial de valor legitima a
utilização de patamar-indenizável por parte do transportador na hipótese de
extravio ou perda de bagagem?
R: A utilização de
patamar-indenizável ou tarifação na ocorrência de extravio ou perda de bagagem
encontra-se prevista no art. 29, XIII e art. 74, parágrafo único ambos do
Decreto nº 2521/98 que regula o transporte rodoviário interestadual e
internacional de passageiros.
Essa tarifação é afastada
pela incidência do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8078/90), no qual
contempla, em conformidade com a Constituição Republicana (art. 5º, X), o
direito básico de reparação de danos (art. 6º, VI) de forma integral.
Além disso, o contrato de
transporte, disciplinado no CC, art. 730 e seguintes, traz cláusula de
incolumidade, que o leva assumir o perfil de garantia de risco, de modo que a
empresa transportadora deverá reparar o dano, integralmente, decorrente do
extravio de bagagem (art. 734, CC, art. 14 do CDC).
Conclui-se, então, que o
parágrafo único do art. 734 do CC e o Decreto 2521/98 não devem ser observados
no que tange à limitação da reparação indenizatória pelo extravio ou furto de
bagagem, porque o CDC tem maior amplitude na efetivação do direito básico do
consumidor, insculpido no art. 6º, VI do CDC, que prevê a integralidade da
indenização.
6)
Em
2008 e 2011, conforme ampla divulgação pela imprensa, houve erupção vulcânica
no Chile, que impediu operações aeronáuticas em aeroportos localizados em
pontos turísticos de ampla demanda, inclusive na Argentina (e. g. Bariloche). Trata-se de fortuito externo apto a elidir
integralmente o dever de indenizar, ou há possibilidade de que o prejuízo do
consumidor seja objeto de ressarcimento junto à companhia aérea, operadora
turística e/ou agência de viagem? Explicar e fundamentar.
R: Não se trata de caso
fortuito externo, pois foi prevista a ocorrência de erupção vulcânica noticiada
pela imprensa de forma ampla. O que se depreende da hipótese é que há dever de
indenizar da operadora turística e/ou agência de viagem por não informar os
consumidores sobre fato natural amplamente divulgado pela imprensa para
possibilitarem o exercício de seus direitos, entre eles a devolução do valor
investido, troca de data da viagem.
O fundamento decorre da
incidência do CDC nesta situação, de modo que pertinente a aplicação da teoria
da responsabilidade objetiva. Com isso, basta a ocorrência do dano, ou seja, o
defeito na prestação do serviço, o prejuízo ao consumidor para que seja
configurado o dever de indenizar do prestador de serviço.
Exceto nos casos de culpa
exclusiva do consumidor, circunstância que não se enquadra no evento relatado
na questão.
Ademais, a erupção
vulcânica não se configura como excludente de responsabilidade objetiva. Isto,
porque não se trata de questão atinente ao direito civil propriamente dito,
onde há a possibilidade de discussão da culpa, até mesmo como forma de afastar
eventual injustiça, na medida em que, nos primórdios do direito romano a
indenização era baseada na culpa.
Portanto, em se tratando
de relação consumo, onde se aplica a proteção conferida pelo CDC aos
consumidores, de rigor o reconhecimento do risco do negócio inerente às
atividades desenvolvidas pelos fornecedores/prestadores de serviço; condição
esta que se apresenta em contrapartida ao lucro auferido.
Deste modo, o consumidor
terá amplo direito à indenização pelos danos (materiais e morais) sofridos em
virtude da viagem frustrada.
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